domingo, 13 de julho de 2008

Um minuto de lembranças

Ele estava lá, sentado, em seu apartamento na periferia.

A sua TV preto-e-branco estava com sinal ruim. Passava algo sobre as formigas carniceiras do Zimbábue, mas ele não ligava. Não estava vendo. Sentado em sua cadeira de plástico promocional, daquelas de bar, que ele havia “pegado emprestado” do boteco da esquina havia uns 5 anos, e que compunha juntamente com a TV a mobília da sala, ele fumava sua bituca de cigarro fedorenta entre goles de álcool. Álcool mesmo, etanol, usado para acender uma churrasqueira que ele não tinha.

Esparramado daquele jeito, sentindo-se cansado, respiração fraca, ele não pensava em nada. Sabia por intuição que estava prestes a morrer, e não ligava. Qualquer coisa seria melhor do que a situação em que se encontrava.

Virou um pouco de lado. Estava começando a suar pelas costas, e não queria ser encontrado grudado pelo suor em sua cadeira, quando, após um mês da sua morte, o dono da pensão o procurasse para pagar os aluguéis atrasados. Apenas virou de lado para facilitar as coisas, e, além de tudo, aquele suor também já o estava incomodando.

Ao virar de lado, viu, lá no canto, jogado contra a parede, o seu vinil dos Beatles, velho e surrado, que havia ganhado do pai havia uns 40 anos atrás.

Lembrava vagamente desse dia, como se fosse um filme que ele havia visto há muito. Sua pequena festa de 8 anos, com uns 10 convidados, no velho casebre da família. Soprou a velinha, ganhou o disco e... não se lembra de mais nada. Deu uma risada ligeira e baforada.

Tossiu, engasgou. Achou que estava morrendo. Mesmo sem ligar, um arrepio lhe percorreu a espinha, não de medo, mas de curiosidade e apreensão. Morreria ele sufocado com o próprio álcool e saliva?

A tosse passou e ele novamente se remexeu. As formigas do Zimbábue agora estavam comendo a carcaça de um pássaro.

Ah, um pássaro. Ele se lembra do pássaro que prendeu e teve que comer durante sua servidão ao exército como recruta. Ele ganhara uma medalha, do que era mesmo? Sobrevivência na mata. Ele usava no exército a mesma armadilha de pássaros que seu avô o ensinara quando era moleque ainda.

Qual pássaro era, um pardal, talvez? Era muito diminuto, e quando o comeu foi apenas duas mordidas. Ele se lembra do gosto. Sem cozer, sem esquentar, semi-morto. Estava horrível. “Do que vocês estão reclamando, seus idiotas?! Isso é frango ao molho pardo”, berrava ironicamente o sargento.

Ele contraiu a mão ao se lembrar do sargento. O sargento... qual era o nome daquele filho da puta mesmo? Diniz? Não, esse era o nome do colega dele dos tempos de exército... O sargento era algo que lembrava porrada... ele lembra que todo mundo chamava ele de porrada... Sargento Hamada! Isso mesmo! Aquele maldito descendente de asiático, que ficava zombando dos recrutas que, sem opção, como ele próprio, tiveram de entrar no exército para ganhar algum dinheiro...

Como foi doloroso ter que se alistar para ganhar dinheiro e ajudar a sua mãe... seu pai havia morrido, aliás, havia sido morto, por causa de dívida.

E ele, com 16 anos, quase 17, teve que se alistar. Sua mãe teve que “convencer” (de modo extravagante) o comandante do quartel a deixar o seu filho com apenas 16 anos entrar no exército, já que era necessário 18 anos.

Por lembrar em Diniz... Como ele havia morrido mesmo? Isso já fazia uns 20, 25 anos. Diniz havia decidido a continuar no exército, e chegou a cabo. Mas teve um sério acidente com granada que o deixou surdo de um ouvido e cego de um olho, metade da cara deformada. Um monstro. Diniz, no próprio hospital do exército, se matou. Pediu à enfermeira que o trouxesse bife, e ela lhe trouxe uma bandeja de almoço. Ele calmamente pegou a faca e se degolou com violência, espirrando sangue em tudo. Foi assim, uma lambida da faca só, com toda a força, que chegou nas tripas do pescoço. A enfermeira ficou em estado de choque. A família dela queria processar a família do Diniz por danos morais.

Inclina um pouco a cabeça para cima. Vê a sua lâmpada no teto escuro, que estava queimada havia meses. Mas do que importa? Ele gostava da escuridão mesmo. Gostava, sentia a escuridão como se fosse um manto que o envolvesse.

Estava escurecendo. Seria o que, sete, sete e meia? O seu relógio só tinha o ponteiro das horas. O dos minutos, bem... ele nem se lembra como o perdera. O pessoal do bar lá embaixo gritou “gol”. O som era bem nítido e forte, porque ele morava no quarto andar e suas janelas estavam quebradas.

Quando era criança ele gostava de jogar bola. Achava que o futebol ia o levar a algum lugar, mas só o levou ao reformatório, quando ele roubou uma bola da loja de brinquedos do centro. Ele passara dias planejando o roubo da bola, junto com outras crianças... Mas essas crianças estragaram tudo. Eram de classe média, que queriam tirar uma onda de bandidos. Aqueles desgraçados. Não agüentavam nem um soco, mas afinal de tudo fora ele o burro de combinar essas coisas com esses filhinhos de papai, que conseguiram se safar do reformatório porque tinham dinheiro.

Ficou no reformatório por 15 meses, tempo o suficiente para aprender coisas como destrancar portas, roubar carros, colocar vidro em carne e jogar para cachorros... Aprendeu a apanhar também. Os garotos do reformatório criavam um ciclo. Quando eles eram menores, apanhavam; quando maiores, batiam. Não só batiam, e faziam outras crueldades também, pois, afinal, no reformatório, não havia mulheres...

Mulher... há quanto tempo não interagia com uma mulher? A última de que se lembra era uma prostituta amiga dele, que não cobrou pelo serviço. Mas ele nunca mais a vira. Nunca mais ficou sabendo dela. Ou ela estava morta agora, jogada, indigente, ou trabalhando sem opções para um cafetão que a ameaçava arrancar-lhe os olhos se não trouxesse no mínimo 100 dinheiros para ele por dia, dos quais ela só ganhava 10.

Do apartamento de cima vinha o som de música brega, e algum casal no prédio estava tendo uma briga feia... Todo dia, nesse mesmo horário, quando o homem chegava, ele chegava dando uma surra na mulher. Na filha, de 10 anos, chicotadas com a cinta de vez em quando.

Lembra-se da briga do seu pai com os cobradores da dívida. Estavam os 3 na sala: ele, seu pai e sua mãe. Dois homens de preto arrombaram a porta e pegaram seu pai pelo colarinho. Seu pai tentou se defender, mas foi espancado e arrastado. Sua mãe tapara-lhe os olhos, chorando, mas ele pôde ouvir, embora na época ele não tivesse entendido muito bem o que significava aquilo tudo. Seu pai fora encontrado morto 5 dias depois, boiando num lago, todo cortado e queimado.

Já era noite. Por que não morrera ainda? Estaria a morte lhe pregando uma peça, querendo que ele se lembrasse de tudo o que fosse desagradável em sua vida antes de levá-lo?

- Hmm... – tentou falar alguma coisa.

Queria xingar a morte, queria xingar Deus e o Diabo para ver se eles ficavam com raiva e o matavam mais rápido. Só não suicidara ainda porque, desde que seu colega Diniz se suicidara, ele ficara impressionado com o fato. Se era pra morrer, que o capeta viesse em pessoa e em enxofre e o levasse para o inferno, aquele desgraçado!

Do nada, percebeu o cheiro de mofo que havia muito impregnava as paredes do seu apartamento. Havia se acostumado com o forte cheiro, e raramente o percebia. Misturado ao cheiro de mofo, vinha um cheiro de podridão da cozinha de 2 metros quadrados, justaposta à sala sem divisórias. Usava de fogão uma lata de sardinhas com álcool embaixo, igual pedreiros usam para esquentar a marmita. Ele já se cortara muitas vezes com aquela latinha, ela era muito afiada na tampa. Mas ela estava parada havia muito tempo, pois todo o álcool que conseguia ele bebia. Para comer lhe sobrava pão velho, que conseguia quando a padaria a 3 quadras dali jogava as sobras de 4 dias fora. E, por vezes, tinha que brigar com outros mendigos para conseguir.

Há quanto tempo comia só pão? Não se lembrava, mas também não se lembrava do gosto de mais nada a não ser álcool e pão. Seu estômago parecia não ligar mais, de tão acostumado.

Seu apartamento... ou melhor, o apartamento em que ele estava só tinha aquela sala, aquela cozinha, e um cubículo que usava como banheiro. Ele dormia na cadeira mesmo. Raramente saía do apartamento.

Quando saía, ficava vagando sem norte pelas ruas. Não conhecia ninguém, não tinha dinheiro, praticamente não existia. Raramente falava, raramente conversava consigo mesmo.

Na última virada de ano, ele fora andando 23km para a praia, para ver alguns fogos de artifício. Adormecera por lá mesmo. Acordou 4 dias depois voltara vagueando, incerto do caminho, de tão tonto.

E acha que, depois disso, o único trajeto que fazia era do apartamento à padaria, a cada quatro dias, para pegar os pães velhos, catar umas latinhas no caminho para vender e conseguir dinheiro para comprar álcool na mercearia.

Não se sentia mais vivo. Sentava ali na cadeira, dormia, bebia, deixava a TV ligada com luz de gato.

Aprendera a fazer gato para roubar eletricidade no reformatório. E deixava a TV ligada 24 horas por dia, para lhe fazer companhia.

E assim era a sua rotina. Parece que ele não lembrava de mais nada que acontecera em sua vida.

Deixou a garrafa de álcool cair, ao lado de várias outras. Estava vazia. Se não morresse nesse dia ou no outro, pensou, teria que levantar, sair, catar mais latinhas para comprar mais álcool. Agora nem ligava mais para os pães, sua fome virara sua bem-conhecida.

Estava muito tonto, não pelo álcool em si, mas sim por sua fraqueza de nutrientes, principalmente.

Sua bituca de cigarro, que havia encontrado na rua pela metade, já havia chegado ao filtro havia muito tempo, mas ele continuava com ela na boca. Estava acostumado. Se sentia pelado sem cigarro na boca. Não que isso importasse, afinal, ele não sabia o significado de roupas descentes. Trajava a mesma bermuda surrada e não usava camisa e calçado por anos. Já estava imune ao frio. Seu pé já estava imune a qualquer condição do terreno.

Sentiu sono.

Dormiu.

E não acordou mais.

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