terça-feira, 15 de julho de 2008

Vida

Quantos anos já se havia passado? Nem mais sabia. Decerto entre sessenta e setenta. Não acreditava em destino nem em nada. Mas, se deveras, existisse, alguém estava a lhe fuder.

Sem prole, sem esposa. Família? Hum! Nessa idade, velhos não tem família. As mãos já estão calejadas de tanto segurar a pá para enterrar.

Olhando da janela, aquele subúrbio fétido, pessoas a catar lixo, mendigar, um prazer traspassava seus lábios, “Tem gente que não só pisa na merda, mas a come também” e isso aliviava um pouco seu desprazer.

O que havia feito nesses mais de meio século? Não contribuira, decerto, em nada para a sociedade. E devia? Só o rejeitara. Sabe mais? Quero mais que lhe foda!

Quando ainda era menino, a vida nunca fora boa. Logo cedo fora obrigado a trabalhar com o pai na roça. Quando o pai morrera, logo cedo, nem sentiu-se triste. Um alivio! Isso. Fora mais que um alivio, não iria mais levar aquela merda de vida no campo. Fugira. Fora à cidade.

Na roça se ouve muito de pessoas que foram pra cidade. Mas só a partida. Nunca ficara sabendo o que acontecia depois. Ouvia boatos que alguns eram presos, viram mendigos. Nunca ouvira estória alguma de alguém que fora pra cidade e virara gente de valor. Na roça não tem isso. Só tem gente capiau. Que não sabe nem soletrar. Gente sem futuro.

Fora assim. Sem medo. Com a roupa do corpo. Sujo. Chinelo remendado. Comida pra apenas um dia. Um pão, velho e duro, que minguava com água pra dar sabor.

Não demorou muito pra virar mendigo. Sua vida mudara um pouco quando achara dinheiro no lixo. Devolver pro dono!? Pra que? Quem perde dinheiro é burro. Não ia contribuir pra essa hipocrisia de pobre devolvendo dinheiro pra rico e pobre continuando na merda. Pegou o dinheiro e foda-se pro dono.

Não era lá muito dinheiro, mas se fosse usado com sabença duraria. Mas quem disse que Ele tinha tal?! Pobre é burro, e não demorou pra voltar a viver na merda, e até pior do que antes, se é possível. Gastou tudo com bebida e prostitutas. Pobre quando tem um dinheirinho vai bebe.

Vivendo mais de 40 anos assim. Na rua. Sem nada. Não conquistara nada. Nem um tostão. Foi quando se mudou das ruas para um prédio abandonado que o dividia com mais um outro punhado de gente. Em geral viciados, Refugio dos Merdas, era assim que era chamado. Era até um bom nome.

Ia a igreja todo o dia. Não por que tinha fé. Se tivesse fé, já a teria vendido por qualquer tostão em troca de uma bebida vagabunda qualquer. Ia mendigar.

Cristãozinho de classe media, ao ouvir sermão do padre fica todo-todo com a situação do mundo e dá esmola pra pobre. Mas sermão de padre dura pouco. Ficam triste por pouco tempo e logo-logo já voltam a pisar na gente.

Mas o que interessa isso? De pouco importa. O que importa é que davam dinheiro. Bando de trouxa. Acham que tão ajudando. Vou é bebe e fuma hoje a noite as suas custas!

domingo, 13 de julho de 2008

O Fugitivo

Estava em uma festa. Havia bebido de mais. Relógio marcava 4 da madrugada. Resolvi voltar para casa. Ia dirigindo. Estava bêbado, mas dava pra ir levando.

Ando cerca de 1 milha, sinais fechados. Escuto um barulho. Passei por cima de algo? Um calafrio percorreu meu corpo, fiquei sóbrio na hora. Olhei pra trás. Um corpo imerso em sangue. Matei! Eu matei alguém! E agora meu Deus? Socorrer? Não! Estou bêbado! Vou ser preso. Acelerei. Corri como nunca corri. Cortando a rua na madrugada cantando pneu.

Tremia. Como tremia! Fui pra casa. Olhei a lataria do carro, não estava amassada. Por sorte! Nada mais daria mais na cara! Aquele carro, meu conversível vermelho com rabeira de peixe. Existe algo que chama mais a atenção!? Se alguém me viu! Estou frito! Existem poucos carros iguais a esse. Alias. Esse era único. Eu mesmo o modificara, um orgulho. Mas justamente por causa dessa paixão, serei preso?! Não! Devia ter voltado! Se ela não estivesse morta, eu a matava! Ninguém ia saber. Estava escuro!

Não posso ficar aqui! Não posso mais ficar com esse carro! Ele está amaldiçoado agora.

Minha única paixão! Algo que demorara tanto tempo para fazer. Três longos anos juntando tempo e dinheiro. Fazendo os mínimos detalhes. O banco de couro importado da Alemanha. Ira tudo pro lixo?! Bem. Antes isso a ser preso!

Tenho que viver uma nova vida agora. Não posso mais ficar nessa casa. Melhor ir é pra um motel barato e pensar no que fazer. Não posso ser visto. O dia tá amanhecendo já! Se eu for rápido ninguém vai me ver.

Ando alguns quilômetros, dia amanhecera e me vejo defronte ao “Motel Love”. Decadência. Mas era isso. Ia ser estranho chegar em um motel de manha sem companhia. Ia dar na cara. Passei o resto do dia espremido em um beco torcendo pra que ninguém me visse.

Anoitecera. Nem precisei forçar a cara de cansado ao chegar no motel. Pedi um quarto qualquer e fui pernoitar. Tomei um banho. Deitei na cama de molas barulhenta. Pensar. O que eu faria agora? Não posso ser preso! Não! Definitivamente não!

Preciso apagar minha existência! Preciso sumir. Mas como? Preciso estar morto para os olhos das pessoas! Isso! Forjaria minha morte!

Tem coisa mais fácil!? Coleto um mendigo na rua. Vou até a minha casa de madrugada. Ligo o gás no máximo. Ponho ele perto do gás. E bum! Morre! Posso até colocar latas fechadas no microondas! Ele fica perto do fogão! Isso! Estava feito! Amanha a noite! Faria isso! Agora precisava dormir.

O dia amanhece. Sai do motel e passa o dia a vagar na rua. A procura de alguém que não fizesse falta. Alguém que caso morresse ninguém jamais perceberia. Em um beco achara sua vitima perfeita.

Um homem em uma aparência deplorável. Um odor pútrido exalava de si. Não podia agir agora. Esperaria até o badalar de duas da madrugada. Hora perfeita!

Passei o resto do dia como no anterior, em um outro beco esperando o tempo passar. Recalculando o plano. Deu a hora. Agora tenho que agir.

Convencer o mendigo a ir comigo era a coisa mais fácil que existe. Só oferecer comida. Disse que era de algum grupo de caridade. Isca fisgada. Fomos a passos rápidos. Ele ofegava. Só alguns poucos carros passavam. Com meus trajes prestos ficava difícil discernir meu rosto. Era só mais alguém sem rosto.

Chego em casa. Por sorte o infeliz ficara calado o tempo todo. É desses sujeitos acabados que estão acostumados com a solidão e comem quieto.

Entrei na casa. Ele me seguiu. Fomos até a cozinha. E agora? Como botar o plano em operação. Como deixar ele imóvel!? Esquecera disso! A parte crucial! Como foi tolo. E agora? Voltar, sair? Abandonar o plano? Jamais! Improvisaria.

Os detetives de hoje em dia são inteligentes. Mas eu já li muito livro. Não é de me gabar, não sou nenhum intelectual, mas sei o que deve ser feito. E ainda mais no Brasil. Eles nunca vão me achar se eu agir só um pouquinho mais inteligentemente que esses criminosos estúpidos de hoje em dia.

Fiquei atrás do mendigo. Imobilizei ele e pressionei a carótida dele com muita força. Desse jeito ele desmaiaria sem deixar marcas e em pouco tempo. O coitado quase nem resistiu, nem gritou. Desfaleceu no chão. Continuei pressionado a artéria, que já ficava roxa na minha mão.

Ele ainda respirava, só desmaiara e desse jeito ele ia ficar por algum tempo. Tinha cerca de 2 minutos ou mais dependendo do sujeito que ao habitual já não era apto a se mover. Não queria matar ele ainda. O jeito que ele morreria seria crucial.

Tinha que criar uma explosão grande que devastasse a casa toda em pouco tempo. Pouco me importa se vão achar que é criminal, só quero que achem um corpo morto e pensem que é o meu!

Um incêndio de grandes proporções e de elevada temperatura.

Pronto. Já sei o que fazer. Saio arrastando o mendigo. Ponho uma sacola plástica em seu rosto. E jogo sua cara contra a escada de minha casa. Assim a arcada dentaria ficaria irreconhecível. E assim guardo os dentes dele na sacola para me livrar depois. O sujeito pareceu acordar mas logo desmaiou. O cérebro é algo estranho, pra aliviar a dor, ele apaga, mal sabendo que isso pode lhe trazer a ruína.

Qualquer detetive acharia estranho não achar os dentes da vitima. Mas é razoável pensar que a vitima foi espancada a tal ponto de perder seus dentes, já que o impacto com a escada desfigurou completamente o rosto do mendigo. Digo Um Impacto como eufêmica, poupar o leitor só sadismo de ter o rosto de outrem sendo arremessado contra a escada dezenas de vezes até o maxilar desprender do rosto. Nos anais do crime, torturas grotescas e bizarras são comuns. Se eu fosse negro seria apenas mais um crime de ódio.

O único problema agora é o DNA do sujeito. Se o fogo for intenso não vai sobrar pele alguma. Mas os ossos são um problema.

O osso humano deve ser queimado não só na parte exterior, mas a interior. O DNA não se extrairia do osso propriamente dito. Mas sim de seu interior.

Para que ele queime por completo não deve ficar em contacto com nenhuma superfície. Se ele tiver tocando o chão, essa parte não queima totalmente. Só tem uma solução. Enforcar o sujeito usando vários fios de cobre enrolados.

Preparativos feitos, corpo enrolado. Pus ele pra balançar e fiquei a olhar com um pouco de prazer. Estava tudo a mil maravilhas. O plano estava de acordo.

Agora a parte mais difícil. O incêndio.

Arrastei meu sofá para debaixo do corpo. Joguei algumas cadeiras em cima do sofá e ao redor do mesmo outras coisas de madeira.

Fui até o meu carro. Ainda estava lá. Com uma mangueira tirei 20 litros de gasolina que pus em um balde. Voltei até a casa.

Até então eu havia tocado coisas naturais de minha impressão digital estar lá. Mas agora eu precisaria de uma luva. Peguei uma que eu possuía e peguei depois Silver-Tape.

Qualquer detetive acharia racional que o criminoso usou luvas ao entrar na casa. E também acharia racional encontrar as impressões digitais que só pertencem a vitima. Se é que ao final do incêndio sobraria tais vestígios, mas toda precaução é pouca. Não preciso me preocupar com as digitais do mendigo, já que o mesmo não tocara em nada, já chegou pra morrer, por assim dizer.

Fechei a janela da cozinha e com a Silver-Tape tapei todas as frestas que encontrei. Essa parte é crucial.

Fechei a porta da cozinha e pus Silver-Tape nela também. Em excesso. E depois com um estilete, cortei perfeitamente, bem rente a porta, e a abri. E com ela aberta. Pus mais Silver-Tape.

A gasolina eu joguei em cima do sofá e nos arredores. E com meus dois botijões de gás, um do fogão e outro reserva, pus um em cada lado do sofá.

Fui até a pia. Tenho uma jarra de suco de aproximadamente 30 centímetros de altura e 13 de diâmetro feita de um vidro grosso. Peguei uma forma de pizza de uns 17 centímetros de diâmetro. Coloquei a forma no microondas e pus álcool etílico até 1 cm de altura na forma. Com 3 latas de atum fiz um tripé para servir de apoio para a jarra de suco. E a pus.

Isso seria o timer. O microondas elevaria a temperatura do álcool até ele entrar em combustão. Ele aqueceria o ar dentro da jarra, fazendo com que o gases menos densos fiquem em seu topo. Isso criaria uma bola de plasma dentro da jarra, que elevaria a temperatura da jarra até ela quebrar. Como o vidro é grosso e temperado demorar-se-á muito tempo até ele quebrar. Sem contar as latas de atum que explodiriam, quebrando o microondas, deixando assim com que o ar exterior entre em contacto com o ambiente dentro do microondas, onde existe fogo. Não há necessidade de tantos preparativos mas seria muito bonito ver tudo isso e isso instigaria e deixaria os detetives desorientados.

E isso então causaria a explosão. Já que a cozinha estaria em alta pressão, por causa do gás de cozinha sendo exalado e não tendo para onde fugir. Uma explosão enorme. Poderia fazer outros timers, mas esses era o mais seguro, já que o meu microondas possui a porta vedada hermeticamente.

Após apertar o botão de ligar do microondas. Abro os botijões de gás e aquele doce som vai ao ar. Saio rapidamente pela porta e a fecho. Não havia necessidade de vedá-la novamente pelo lado de fora. E também, não se havia tempo para tal. Pois a primeira vedação, que fora cortada, e a segunda que fora posta agiriam como se estivesse sendo vedado por dentro. Bem simples.

Pego a sacola com os dentes do sujeito e minhas luvas. E saio noite a dentro a correr. Quando estava a cerca de 1 milhas de minha casa escuto uma explosão. E que explosão! Fora monstruosas! O chão chegara a até trepidar um pouco. E as janelas das casas ao redor? Aquele barulho de trepidação. Tenho a honra de dar ao Brasil seu primeiro terremoto!

Olho para trás e vejo ao longe minha casa queimar. Em pouco tempo o fogo havia tomado a casa toda. E até os bombeiros chegarem não sobrará quase nada! E o corpo estará carbonizado e irreconhecível.

Agora o restante do plano era. Fugir. Mas não pensem que eu sou como esses foragidos quaisquer, que, quando ricos, vai pro Haiti. Ou quando são pobres, pra cidade do interior. Não! Tenho no meu sangue o instinto!

Iria pra floresta. Levava comigo apenas uma faca afiada que pegara antes de sair da cozinha. Não precisava de mais nada.

Ao redor da minha cidade havia montanhas em seu flanco leste. E uma mata fechada. Era para lá que eu iria.

Dizem alguns que tem até onça nessa floresta. Mas na vida, a coisa que se tem mais a temer é o bicho homem.

Ainda era noite. O plano todo demorara cerca de uma hora para ser executado. E agora eu corria para a floresta. Em 20 minutos eu chego nela. Entro mato adentro. No escuro. A lua não tava no céu. Com a faca na mão direita e mais nada. Não tinha lanterna e nem fósforo. Mas isso apenas deixava as coisas mais emocionantes.

Tinha o mapa da floresta ralamente desenhado na minha mente e fui andando assim. Aos trancos e solavancos.

Aquele barulho de coruja e o frio danado de comer os ossos. Nenhum animal a vista. Depois de ter andando cerca de 4 milhas mato a dentro, o que demorou cerca de 2 horas de correria em misto de um galopar, eu paro, fadigado. Subo em uma árvore alta e boa de suporte e passo a noite assim. Não dormia. Apenas fechava os olhos. Cochilava e acordava assustado.

O dia amanhece e assim, a fome danada. Não comia nada há dois dias! A excitação fora tanta que nem se lembrava de comer.

Precisava caçar e se livrar também desses malditos dentes de mendigo! Que se encontrados, só dariam trabalho.

Comida primeiro. Precisava de resultados rápidos. Morria de fome a essa altura. E só com uma faca não da pra pegar animal algum na mata. Precisava de uma lança ou então construir armadilha. Com nenhuma habilidade nos dois, mas com a parte teórica perfeitamente incrustada no cérebro, de tanto ler livro de aventura, prossegue o plano.

Desci e quebrei um ganho bom. Firme. Arranquei as folhas e tinha uma quase lança. Torta, mas há de ser útil. Com a faca fiz rapidamente uma ponta mortal. Assim ia me proteger de qualquer um que ousa-se cruzar minha frente.

Anda alguns passos e escuto um barulho. Há cerca de 130 pés de mim um veado andando tranqüilo entre as árvores. Com uma furtividade inigualável eu vou me esbeirando entre árvores, fazendo o menor barulho e me movendo com a maior eficiência. Vou chegando cada vez mais próximo do animal e o coração começa a bater acelerado. Estava a 15 pés do bicho e ele não me apercebera, tamanha a minha cautela.

Com minha lança improvisada em mãos e em posição de ataque, joguei-a com muita força e ela crava o dorso do animal. Tenta correr. Da à volta em torno de si mesmo e cai no chão, morto. Corro até o animal e o vejo morto.

Não podia ascender um fogo, e mesmo se pudesse, não tinha meios. Não fizera o reconhecimento da região, não sabia há que distância havia homens.

Com a faca na mão, vou abrindo o veado, estripando suas partes. Como um animal selvagem, comi assim, cru e bebi seu sangue, que escoria minhas faces e dava-me uma aparência bestial.

Faria-me muito mal comer essa carne crua, mas faria-me muito mais mal, não a comer.

Como os animais, não posso me dar a luxuria de comer carne cozida, frita ou assada. Teria que fazer igual aos bichos, comer cru.

Após saciado minha fome saio dali e deixo o animal morto ali.

Ando a norte, a fim de me adentrar cada vez mais profundamente nessa floresta.

Horas de andanças. Vejo alguns animais, mas nenhum ameaçador. Havia andado mais de 10 milhas, mas não estava inclinado a parar. Sabia que por ali perto havia algum rio. Havia de chegar nesse rio.

Anoitecia já quando cheguei no rio. A cidade mais próxima do rio ficava umas 20 milhas rio abaixo. Não era um rio famoso. Era um modesto rio apenas.

Peguei os dentes do mendigo. Embrulhei um a um e folhas de árvore e barro. E joguei um. Passados alguns segundos. Jogo outro em outro ponto e assim vai. O rio os levarias a pontos diferentes. Seriam esquecidos. Se achados não trariam tantos problemas.

Quando de repente vejo meu ombro sendo tocado. Viro assustadoramente rápido e vejo um homem. Parecia que ele estava falando comigo há muito tempo, mas eu nem me apercebera. Quando os filósofos diziam que o homem apenas escuta o que quer escutar, estavam certos.

O terror nos meus olhos era visível. Ele perguntava se esta tudo bem comigo. Na ânsia de não ser descoberto peguei minha faca e finquei em seu peito. Ele tentou tirar, mas não adiantava, cai morto como uma pedra.

E agora. Essa morte? Como esconderia!? O que faria?! Alias. O mais importante. O que ele estava fazendo aqui?! Não era deserto essa região?! Me enganara? Pegara o trajeto errado?

Isso ficaria para se descobrir depois. A urgência imediata era a presença daquele corpo ali, esfaqueado friamente e sem vida. Livrar-se de dentes de mendigo era fácil, mas Aquilo! Pensa, pensa.

Decidira comê-lo. Era o mais plausível de se fazer. Não conseguiria comê-lo todo naquele dia, obviamente. Ele comeria as partes que mais poderiam identificar o corpo, como a face e a medula. As outras carnes ele estilhaçaria em pequenos pedaços com a faca e os enterraria espalhados pela floresta. Os ossos ele moeria com alguma pedra e diluiria o pó no rio. O plano era perfeito.

Levara o dia todo para executar tal plano e estava fadigado. Tudo por causa daquele intruso! Mas, de onde ele teria vindo? Amanhã ele faria uma busca de reconhecimento pela área. Por hora a melhor idéia seria dormir em uma árvore, longe do solo.

Acordara subitamente. Seria dia seguinte? Seria mais que isso? Ele realmente estava cansado e talvez dormira muito. Mas fora acordado por várias vozes. Estaria sonhando!? Provavelmente não. Ele sentia dor de cabeça. Provavelmente pela quantidade de carne crua que comera os últimos tempos. Enfim. Mas era impossível haver tantas pessoas quanto as vozes naquele lugar tão distante. Pelo menos ele andara muito para chegar ali. Teria ele andado em círculos? Será que o tinham rastreado?

Observou uma clareira ali perto e viu o que lhe parecera 5 pessoas. Um homem, uma mulher, uma adolescente, e um casal de crianças. Um cachorro brincava com as crianças. Faziam pic-nic. Um carro estava estacionado entre árvores.

Com certeza eram da polícia, ele pensou. Tinham rastreado-o. O cachorro deveria ser farejador com pedigree, o carro era uma viatura e forjaram um pic-nic para atraí-lo. Trouxeram até crianças para dar realidade a tudo. Ele seria preso e condenado. Era o fim.

Mas não! Ele não deixar-se-ia capturar tão facilmente. Ele tinha o elemento surpresa. Ele iria aniquilá-los e fugir para outro lugar mais distante.

Fora sorte ter trazido aquela faca afiada. Ele faria um arco e algumas flechas. Seria decerto fácil matá-los. Ele furaria o pneu do carro. Abateria primeiramente os dois alvos mais distantes. Algum outro deveria socorrer quem estivesse caído, e ele abatê-los-ia também. Quem tentasse fugir pelo carro não conseguiria por causa das rodas. Esses no carro ele poderia alvejar com flechas ou degolá-los.

Ele demorou o que pareceu uma hora e meia para fazer um arco, envergá-lo, colocar um fio elástico de cipó e fazer cinco flechas afiadas. Não ficaram uma obra de arte, mas eram funcionais e matariam quem tivesse a carne atravessada desde que não estive-se muito distante.

Era chegada a hora. As crianças brincavam à beira do rio e os outros cuidavam do pic-nic a uns dez metros de lá. Ele acertaria as crianças primeiro.

Ele não tinha perícia qualquer em arco e flecha. Então deveria chegar perto do alvo. 10 metros no mínimo. Por sorte havia muitas árvores para se camuflar por ali.

Esperou o momento ideal. Arqueou a arma, segurou a flecha com firmeza. Calculou mentalmente à distância. Uns 8 metros. Levando em conta que a criança mais na beira do rio, o alvo, estava agachada, e ele estava em pé, o ângulo de tiro deveria ser um pouco abaixo do ângulo raso.

Uma inocente criança, brincando e rindo. Deveria mesmo matá-la? Por um momento, pensou em desistir. Mas logo veio a idéia de aquelas pessoas mostrarem seus distintivos, armas e prenderem-no. Não!

Zumpt! Soltou a mão que segurava a flecha.

A flecha assobiou com aquele típico som quase inaudível e penetrou as costas do garotinho, bem entre as omoplatas. Caiu sem vida no rio.

- Juca! Eu disse pra você não nadar agora. Saia daí e vem comer sanduíches - disse amavelmente a mulher.

De onde os outros estavam, eles não viram o espetáculo que acontecia magicamente naquele rio. O puro sangue do garotinho vazava pelos dois furos de sua caixa toráxica, um pelas costas e um pelo peito, atravessado, espalhando-se pelo rio e dando aquela linda coloração vermelha transparente.

Ele quase esquecera do que estava fazendo. Acordou de seu momentâneo transe para a vida real. A outra criança, uma menininha, observava o rio e o sangue, sem entender muito bem. Teria uns 4, 5 anos. Não conhecia a morte talvez. Mas era o próximo alvo e deveria alvejá-la sem que ela alertasse os adultos.

Repetiu o processo e zapt! A flecha atravessou-a diagonalmente pela barriga. Como ela não estava tão perto do rio, caiu ali mesmo, no chão.

Dessa vez os adultos viram. A mulher soltou um grito e o homem correu para socorrer a garota. Por não saber o que acontecera e repentinamente ver uma flecha atravessada naquela doce criança, que jazia sem vida, o homem ficou parado ali, sem saber o que fazer.

Bom para o arqueiro. Esse ele mataria melhor matado. Chegou mais perto, a uns 5 metros, mirou cuidadosamente e atirou a flecha. Acertou-lhe o ombro! O homem gritara, mas não morrera. Que má sorte! Ele teria de gastar outra flecha, o que presumia que uma das próximas vítimas teria de morrer a facadas.

O homem tentara correr para o carro, mas foi alvejado mortalmente no lombo agora.

Já não era mais preciso se camuflar. Todos já sabiam de sua presença. A mulher e a adolescente correram para o carro e o ligaram, tentando fugir. Porém não se deslocaram. Os quatro pneus estavam absolutamente sem ar naquele terreno cheio de solavancos e barro.

Que tipo de polícia é essa que corre, ele pensou. Malditos policiais. Se acham o máximo, mas estão correndo. Bem. Ele os mataria do mesmo jeito.

Os vidros e portas estavam trancados. As mulheres dentro gritavam. Ele vira vários filmes de terror e sempre gostara da parte em que as pessoas gritam, sem poder fazerem nada. Elas não tinham como fugir. Eram como moscas impotentes na teia de uma aranha.

Ele calmamente deixou o arco e a flecha restante no chão. Pegou uma grande pedra que havia por ali. Chegou perto do carro e quebrou o vidro frontal no terceiro golpe com a pedra. Empunhou sua faca e assassinou-as uma após a outra, degolando-as. Como era bonito ver o sangue espirrado diretamente do pescoço. Era como um gêiser vermelho. Matar era decerto a oitava virtude cardeal. Chacinas são a nova arte do futuro.

Como eram tolas essas vítimas, decerto o nome, vitimas, não reagem. Vêem matarem os seus e pedem que cessem a matança quando se trata de si mesmos? Ora! Que tolice. Pior fora a policial que se disfarçara de mãe. Essas são as piores! Elas ameaçam alguém mais forte do que elas. Aqueles gritos "Você será preso! Você não vai sair dessa". Palavras são apenas boas para bullying, no mais, uma bela faca, hm... fala muito mais.

Pronto. Cinco corpos jazem no chão. Um homem, duas crianças e duas mulheres. Como se livrar dos corpos? E ainda tinha o carro! O carro. Procuro na viatura algum distintivo, radio da policia. Nada. Nada! Meu deus! Não eram policiais? Por um reles momento eu senti um pouco de remorso, matei pessoas inocentes. Mas logo essa sensação passou. Mereceram. Estavam no lugar errado na hora errada. Eu tive que sofrer por causa disso! Se eu não tivesse dirigindo e atropelado aquela pessoa eu não estaria aqui. Porque eu tenho que ter carma e eles não? Mereceram morrer. Alias. Era meu dever matar eles. Isso. Tive que puni-los. Ah. Questões filosóficas aparte, como vou me livrar? Alias, devo me livrar dos corpos?

Se eles estão aqui significa que deve ter alguém que saiba que eles estão aqui. E se eles não voltarem em 1, diga 3 dias, alguém vai vir procurar e vai ver corpos. E os policiais dessa vez vão procurar na mata ou aos arredores o criminoso. Definitivamente não podem encontrar os corpos nem o carro. Mas como se livrar de um carro? Um carro! Não da pra comer nem enterrar! E agora o carro não tinha mais pneus! Eu os furara. Não da nem para tirar o carro dali e jogar ele fora em algum lugar. Ah! Bem. Vamos ser lógicos. Minhas digitais não estão no carro. Estou com a minha luva de motoqueiro desde o começo. Então não preciso me preocupar em ser identificado. Alias. Não tem como me identificarem. Nesse momento eu ri e ri por alguns minutos.

Passei meia hora arrastando os corpos para dentro do carro. Todos os cinco. Peguei a toalha usada no pic-nic e pus dentro do tanque de combustível. Desde o mendigo eu fiquei aficionado por explosões. O homem tinha um isqueiro. Peguei ele. Seria útil mais tarde. Botei fogo na ponta da toalha e corri muito rapidamente. Nem 15 segundos depois uma explosão.

Pouco mais de 3 minutos uma grande área da floresta estava pegando fogo. Isso seria bom. Distrairia os policiais. Continuei correndo. Corri por 3 horas. As pernas falhavam por varias vezes. Cai inúmeras vezes. Minhas pernas, joelhos, sangravam dolorosamente. Minha mão estava ralada. Suava. Estava banhado em meu próprio sangue, mas corria floresta adentro.

Droga! Por culpa daqueles cinco agora tive que destruir minha morada? Pra onde eu vou? Será que os peritos já declararam minha morte ou acham que sou foragido por assassinato? Não tinha como saber. Não tinha televisão nem jornais. Precisava me aproximar da civilização, mesmo que seja perigoso eu preciso saber se eu to morto ou sou criminoso.

Bem. Já estava bem escuro. Ia dormir. Em cima de uma arvore novamente. A dor dos machucados junto com aquele gélido frio da madrugada incomodou. Incomodou mais ainda a fome. Passara o dia todo planejando matar os 5 e fugindo. Estava completamente exausto. Não sei se dormi ou fiquei a noite acordado. Mas assim a noite passou.

Eu estava sujo. Imundo! Roupas ensangüentadas, rasgadas. Sujo de lama e barro. Precisava me lavar e arranjar roupas novas. Não podia retornar a civilização nesse estado.

Continuei andando. Após cerca de umas duas horas de caminhado, não sei ao certo, não possuía relógio e a minha percepção do tempo estava começando a ficar bem confusa, a floresta começa a ralear ate acabar. Estava no alto de um barranco e abaixo, cerca de uns 50 metros declive abaixo possuía uma casa, pequena e velha. Estava eu em alguma fazenda ou área rural? Não sabia. Eu nem ao menos sabia mais quantos quilômetros já havia andado ou há quantos dias eu estava nessa vida. Parecia que eu já estava assim há anos. Que sempre havia vivido fugindo e sendo perseguido.

Com a faca na mão eu vou descendo o declive e chego ate a casa. Entro sem cerimônias. Não havia ninguém. Procuro por comida e acho algumas coisas e como. A casa possuía um fogão a lenha na cozinha, a parede dele estava toda queimada. A sala era pequena e possuía um sofá e uma cadeira de balanço. Sem televisão, geladeira ou qualquer equipamento moderno.

Tinha um quarto e um chuveiro. Procuro algumas mudas de roupa e acho e vou tomar meu banho. Fui rápido e ligeiro e sempre deixei minha faca ao meu alcance. Pensava a cada segundo que alguém irromperia casa a dentro querendo me matar.

Lavado e com roupas novas fui tratar meus ferimentos. Por toda a perna escoriações. Braços. Mãos. Ah! Pela primeira vez desde de que comecei a fugir comecei a pensar melhor a respeito disso tudo. Se eu sai-se dessa, nunca mais dirigiria um carro ou beberia de novo! Ah! Ah!

Sento no sofá e fico alguns minutos olhando para a parede. Adormeço.

Quando acordo me assusto por ter dormido, mas logo me tranqüilizo. Mas alguns minutos depois minha cara estava tomada pelo terror. A minha frente havia um prato de comida e eu estava enrolado em um cobertor. Levando abruptamente e começo a procurar pela casa, alguém estava lá!

Ninguém. Ninguém!!

Sento de novo no sofá e começo a ficar profundamente preocupado. Fora eu quem colocara aquela comida ali? E o cobertor? Eu me cobrira? Não. Não me lembro de ter feito isso. Ou fizera? Comecei a ficar apreensivo, estava eu a ficar louco? Enrolei mais ainda no cobertor e fiquei a olhar a parede novamente me envolvido nesses pensamentos.

Alguns segundos depois a porta da frente abrira e uma pessoa entrara. Passara por mim e fora para a cozinha. Não me mexi. Pouco tempo depois a pessoa não voltara ainda. Peguei então minha faca e escondi na minha calça e fui para a cozinha com sutileza.

Entrando na cozinha a pessoa me vira entrar. Era uma mulher. Cerca de 27 anos de idade. Sem muito traços marcantes. Naquela momento eu só pensei em uma coisa; em como matar ela. Cortaria a garganta, assim ela não gritaria. É. Decerto, eu faria isso.

- Ah! Já acordara? Estais melhor? – ela me disse com muita ternura. Foi preciso alguns segundos para eu compreender o que ela quis dizer. Já quase me esquecera como é conversar.

- É... Sim...

- Que bom – disse ela sorrindo e voltando a preparar a comida.

Não que eu sentisse compaixão por ela e não quisesse mais a matar. Mas fiquei profundamente desconcertado com a presença dela.

Mas ela me vira. Pode não ser policial ou qualquer coisa. Mas me vira! E por isso devia morrer. Peguei a minha faca e fui me aproximando dela.

Quando estou há um metro dela ela se vira e me olha. Eu, com faca em punho e uma cara abismal. Eu hesitei por um segundo. Mas avancei logo em seguida para ela e cravei a faca em seu peito. Ela não gritou, não se mexeu, não fez absolutamente nada, apenas caiu. Ainda não morreu. Respirava com dificuldade.

Eu apenas disse uma palavra a ela, antes de morrer. “Desculpe”. Ela, ainda com a cara aterrorizada, morreu.

Me levantei e fui a sala. Peguei a comida que ela fizera e comi e fui embora.

Foi nesse momento que eu percebi que não conseguiria mais ter minha vida antiga novamente. Eu não sentia-me culpado em matar as pessoas, não sentia remorso, não sentia nada. Eu ate gostava. Eu passaria o resto da minha vida fugindo e matando, ate um dia eu ser pego e morto eu mesmo.

Um minuto de lembranças

Ele estava lá, sentado, em seu apartamento na periferia.

A sua TV preto-e-branco estava com sinal ruim. Passava algo sobre as formigas carniceiras do Zimbábue, mas ele não ligava. Não estava vendo. Sentado em sua cadeira de plástico promocional, daquelas de bar, que ele havia “pegado emprestado” do boteco da esquina havia uns 5 anos, e que compunha juntamente com a TV a mobília da sala, ele fumava sua bituca de cigarro fedorenta entre goles de álcool. Álcool mesmo, etanol, usado para acender uma churrasqueira que ele não tinha.

Esparramado daquele jeito, sentindo-se cansado, respiração fraca, ele não pensava em nada. Sabia por intuição que estava prestes a morrer, e não ligava. Qualquer coisa seria melhor do que a situação em que se encontrava.

Virou um pouco de lado. Estava começando a suar pelas costas, e não queria ser encontrado grudado pelo suor em sua cadeira, quando, após um mês da sua morte, o dono da pensão o procurasse para pagar os aluguéis atrasados. Apenas virou de lado para facilitar as coisas, e, além de tudo, aquele suor também já o estava incomodando.

Ao virar de lado, viu, lá no canto, jogado contra a parede, o seu vinil dos Beatles, velho e surrado, que havia ganhado do pai havia uns 40 anos atrás.

Lembrava vagamente desse dia, como se fosse um filme que ele havia visto há muito. Sua pequena festa de 8 anos, com uns 10 convidados, no velho casebre da família. Soprou a velinha, ganhou o disco e... não se lembra de mais nada. Deu uma risada ligeira e baforada.

Tossiu, engasgou. Achou que estava morrendo. Mesmo sem ligar, um arrepio lhe percorreu a espinha, não de medo, mas de curiosidade e apreensão. Morreria ele sufocado com o próprio álcool e saliva?

A tosse passou e ele novamente se remexeu. As formigas do Zimbábue agora estavam comendo a carcaça de um pássaro.

Ah, um pássaro. Ele se lembra do pássaro que prendeu e teve que comer durante sua servidão ao exército como recruta. Ele ganhara uma medalha, do que era mesmo? Sobrevivência na mata. Ele usava no exército a mesma armadilha de pássaros que seu avô o ensinara quando era moleque ainda.

Qual pássaro era, um pardal, talvez? Era muito diminuto, e quando o comeu foi apenas duas mordidas. Ele se lembra do gosto. Sem cozer, sem esquentar, semi-morto. Estava horrível. “Do que vocês estão reclamando, seus idiotas?! Isso é frango ao molho pardo”, berrava ironicamente o sargento.

Ele contraiu a mão ao se lembrar do sargento. O sargento... qual era o nome daquele filho da puta mesmo? Diniz? Não, esse era o nome do colega dele dos tempos de exército... O sargento era algo que lembrava porrada... ele lembra que todo mundo chamava ele de porrada... Sargento Hamada! Isso mesmo! Aquele maldito descendente de asiático, que ficava zombando dos recrutas que, sem opção, como ele próprio, tiveram de entrar no exército para ganhar algum dinheiro...

Como foi doloroso ter que se alistar para ganhar dinheiro e ajudar a sua mãe... seu pai havia morrido, aliás, havia sido morto, por causa de dívida.

E ele, com 16 anos, quase 17, teve que se alistar. Sua mãe teve que “convencer” (de modo extravagante) o comandante do quartel a deixar o seu filho com apenas 16 anos entrar no exército, já que era necessário 18 anos.

Por lembrar em Diniz... Como ele havia morrido mesmo? Isso já fazia uns 20, 25 anos. Diniz havia decidido a continuar no exército, e chegou a cabo. Mas teve um sério acidente com granada que o deixou surdo de um ouvido e cego de um olho, metade da cara deformada. Um monstro. Diniz, no próprio hospital do exército, se matou. Pediu à enfermeira que o trouxesse bife, e ela lhe trouxe uma bandeja de almoço. Ele calmamente pegou a faca e se degolou com violência, espirrando sangue em tudo. Foi assim, uma lambida da faca só, com toda a força, que chegou nas tripas do pescoço. A enfermeira ficou em estado de choque. A família dela queria processar a família do Diniz por danos morais.

Inclina um pouco a cabeça para cima. Vê a sua lâmpada no teto escuro, que estava queimada havia meses. Mas do que importa? Ele gostava da escuridão mesmo. Gostava, sentia a escuridão como se fosse um manto que o envolvesse.

Estava escurecendo. Seria o que, sete, sete e meia? O seu relógio só tinha o ponteiro das horas. O dos minutos, bem... ele nem se lembra como o perdera. O pessoal do bar lá embaixo gritou “gol”. O som era bem nítido e forte, porque ele morava no quarto andar e suas janelas estavam quebradas.

Quando era criança ele gostava de jogar bola. Achava que o futebol ia o levar a algum lugar, mas só o levou ao reformatório, quando ele roubou uma bola da loja de brinquedos do centro. Ele passara dias planejando o roubo da bola, junto com outras crianças... Mas essas crianças estragaram tudo. Eram de classe média, que queriam tirar uma onda de bandidos. Aqueles desgraçados. Não agüentavam nem um soco, mas afinal de tudo fora ele o burro de combinar essas coisas com esses filhinhos de papai, que conseguiram se safar do reformatório porque tinham dinheiro.

Ficou no reformatório por 15 meses, tempo o suficiente para aprender coisas como destrancar portas, roubar carros, colocar vidro em carne e jogar para cachorros... Aprendeu a apanhar também. Os garotos do reformatório criavam um ciclo. Quando eles eram menores, apanhavam; quando maiores, batiam. Não só batiam, e faziam outras crueldades também, pois, afinal, no reformatório, não havia mulheres...

Mulher... há quanto tempo não interagia com uma mulher? A última de que se lembra era uma prostituta amiga dele, que não cobrou pelo serviço. Mas ele nunca mais a vira. Nunca mais ficou sabendo dela. Ou ela estava morta agora, jogada, indigente, ou trabalhando sem opções para um cafetão que a ameaçava arrancar-lhe os olhos se não trouxesse no mínimo 100 dinheiros para ele por dia, dos quais ela só ganhava 10.

Do apartamento de cima vinha o som de música brega, e algum casal no prédio estava tendo uma briga feia... Todo dia, nesse mesmo horário, quando o homem chegava, ele chegava dando uma surra na mulher. Na filha, de 10 anos, chicotadas com a cinta de vez em quando.

Lembra-se da briga do seu pai com os cobradores da dívida. Estavam os 3 na sala: ele, seu pai e sua mãe. Dois homens de preto arrombaram a porta e pegaram seu pai pelo colarinho. Seu pai tentou se defender, mas foi espancado e arrastado. Sua mãe tapara-lhe os olhos, chorando, mas ele pôde ouvir, embora na época ele não tivesse entendido muito bem o que significava aquilo tudo. Seu pai fora encontrado morto 5 dias depois, boiando num lago, todo cortado e queimado.

Já era noite. Por que não morrera ainda? Estaria a morte lhe pregando uma peça, querendo que ele se lembrasse de tudo o que fosse desagradável em sua vida antes de levá-lo?

- Hmm... – tentou falar alguma coisa.

Queria xingar a morte, queria xingar Deus e o Diabo para ver se eles ficavam com raiva e o matavam mais rápido. Só não suicidara ainda porque, desde que seu colega Diniz se suicidara, ele ficara impressionado com o fato. Se era pra morrer, que o capeta viesse em pessoa e em enxofre e o levasse para o inferno, aquele desgraçado!

Do nada, percebeu o cheiro de mofo que havia muito impregnava as paredes do seu apartamento. Havia se acostumado com o forte cheiro, e raramente o percebia. Misturado ao cheiro de mofo, vinha um cheiro de podridão da cozinha de 2 metros quadrados, justaposta à sala sem divisórias. Usava de fogão uma lata de sardinhas com álcool embaixo, igual pedreiros usam para esquentar a marmita. Ele já se cortara muitas vezes com aquela latinha, ela era muito afiada na tampa. Mas ela estava parada havia muito tempo, pois todo o álcool que conseguia ele bebia. Para comer lhe sobrava pão velho, que conseguia quando a padaria a 3 quadras dali jogava as sobras de 4 dias fora. E, por vezes, tinha que brigar com outros mendigos para conseguir.

Há quanto tempo comia só pão? Não se lembrava, mas também não se lembrava do gosto de mais nada a não ser álcool e pão. Seu estômago parecia não ligar mais, de tão acostumado.

Seu apartamento... ou melhor, o apartamento em que ele estava só tinha aquela sala, aquela cozinha, e um cubículo que usava como banheiro. Ele dormia na cadeira mesmo. Raramente saía do apartamento.

Quando saía, ficava vagando sem norte pelas ruas. Não conhecia ninguém, não tinha dinheiro, praticamente não existia. Raramente falava, raramente conversava consigo mesmo.

Na última virada de ano, ele fora andando 23km para a praia, para ver alguns fogos de artifício. Adormecera por lá mesmo. Acordou 4 dias depois voltara vagueando, incerto do caminho, de tão tonto.

E acha que, depois disso, o único trajeto que fazia era do apartamento à padaria, a cada quatro dias, para pegar os pães velhos, catar umas latinhas no caminho para vender e conseguir dinheiro para comprar álcool na mercearia.

Não se sentia mais vivo. Sentava ali na cadeira, dormia, bebia, deixava a TV ligada com luz de gato.

Aprendera a fazer gato para roubar eletricidade no reformatório. E deixava a TV ligada 24 horas por dia, para lhe fazer companhia.

E assim era a sua rotina. Parece que ele não lembrava de mais nada que acontecera em sua vida.

Deixou a garrafa de álcool cair, ao lado de várias outras. Estava vazia. Se não morresse nesse dia ou no outro, pensou, teria que levantar, sair, catar mais latinhas para comprar mais álcool. Agora nem ligava mais para os pães, sua fome virara sua bem-conhecida.

Estava muito tonto, não pelo álcool em si, mas sim por sua fraqueza de nutrientes, principalmente.

Sua bituca de cigarro, que havia encontrado na rua pela metade, já havia chegado ao filtro havia muito tempo, mas ele continuava com ela na boca. Estava acostumado. Se sentia pelado sem cigarro na boca. Não que isso importasse, afinal, ele não sabia o significado de roupas descentes. Trajava a mesma bermuda surrada e não usava camisa e calçado por anos. Já estava imune ao frio. Seu pé já estava imune a qualquer condição do terreno.

Sentiu sono.

Dormiu.

E não acordou mais.

O Maníaco

Tudo começou numa aula de psicologia, na faculdade. Robertisson nunca gostou de ir nas aulas da faculdade, se julgava superior a isso. Porém, naquele dia ele quis ir. Por quê? Ora, porque ele já estava no limite de faltas, logo em abril ainda. Ele não era idiota o suficiente para ter que repetir um período inteiro também, né! Pelo menos, ele teve férias prolongadas até o final de abril. De agora em diante, era só chegar na faculdade, marcar presença, assistir uma aula e sair. Simples, não?

Pois então. A primeira aula que ele assistia no ano era de psicologia. A matéria já estava bem pra lá. Era algo sobre “TOC”, Robertisson não estava entendendo muito bem, mas isso despertou o seu interesse. O professor, sujeito esse bem engraçado, por sinal, baixinho, careca, voz fina e bigode exemplar, falava algo sobre manias.

Robertisson devaneou. Teria ele alguma mania? Achou que não. Mas poxa, manias eram tão legais! Ele quis ter uma mania. Passou o dia todo pensando em alguma mania legal.

Começou tentando criar uma segunda personalidade. O que seria de legal numa segunda personalidade? Talvez a segunda personalidade dele pudesse dominar o corpo dele quando ele estivesse em situações de stress. Ele seria mais durão, não precisaria de seus óculos habituais, e saberia kung-fu. Essa era a parte importante, saber lutar kung-fu, que ele sempre quis fazer.

Começou a testar essa mania. Realmente, ela era bem legal, só que a parte dos óculos não funcionava, e ele era faixa amarela no kung-fu ainda. E de durão, só o cotovelo mesmo.

Mas mesmo assim, essa era uma mania muito comum, muito vulgar. Ele queria algo novo, exótico, nunca dantes imaginado!! Pensa, pensa... Poderia sempre se referir a si mesmo na terceira pessoa:

- Robertisson quer jantar, mãe! – gritou ele. Sua mãe não entendeu muito bem, mas fazer o quê? Ele estava gostando.

Porém, algo faltava. Muitas pessoas tinham essa mania, principalmente os índios. Faltava algo que desse classe a essa mania. Quem sabe, algum efeito sonoro... isso! Reverberação! Ele faria um eco artificial quando proferisse seu nome:

- Mãe, traz logo jantar para Robertisson-son-son-son...

Ele estava ficando bom nisso. Ele se sentia o pioneiro nessa mania. Andava confiante de si, achava-se muito legal. Ele geralmente fazia 5 reverberações, 6 quando estava empolgado.

Foi dessa confiança que ele bolou a próxima mania. Ele reservaria uma hora do seu dia, todos os dias, para pensar em si mesmo e refletir sobre seus gloriosos feitos e façanhas. Faria até mesmo um altar em seu quarto para si mesmo, e tinha que encostar lá ao menos uma vez ao dia, todos os dias.

Ele começou a ter fama de louco. Vez ou outra ele saía da aula, ia para a cantina, e ficava ajoelhado em posição de lótus, falando em voz alta, quase gritando, sobre como ele era benevolente. A sociedade era felizarda com sua presença.

A sua proximidade com a cantina lhe causou outra mania. Duas, na verdade: uma era de comprar um tablete de halls preto por hora, mesmo que não os consumisse na íntegra, e morder todas as moedas que recebia de troco para ver se era verdadeira.

Começou, com o tempo, a contradizer tudo o que as pessoas falavam. Mesmo quando concordasse com elas, arrumava uma maneira de discutir, começou a ter facilidade em criar argumentos para assertivas que nem mesmo ele concordava.

Certo dia, viu um filme de pirata. Achou interessante o mistério dos tapa-olhos. Começou a usar um tapa-olho, mesmo que esse olho enxergasse perfeitamente. Parou de tomar banho também, alegando sempre que “é nessas horas que ELES atacam”.

Passou a adotar um referencial. Sempre que ia virar pra algum lado, virava para a direita, recusava-se a virar para a esquerda, a qualquer custo. Quando tinha de faze-lo, virava sempre 270º para a direita.

Começou a ir na biblioteca da faculdade. Agora tinha a mania de folhear livros para ouvir o barulho do livro. Ele fazia isso repetidamente, passava tempos e tempos folheando livros. Dizia que os livros tinham sua própria língua. Foi daí que começou a terminar qualquer raciocínio que tivesse com uma suposta citação de algum livro.

Começou a acreditar que não enxergava coisas azuis. Quando interrogado a respeito, dizia que estava enxergando apenas o vácuo no lugar do azul.

Por falar em azul, ele tinha absoluta certeza de que o planeta Terra era amarelo e quadrado. Seu incentro era sempre a sua posição no momento, motivo esse de a Terra girar, ou de nunca se conseguir chegar ao fim do mundo (os cantos e bordas).

Começou a fazer sua própria comida, sempre, e sempre bebia as coisas numa mesma caneca, que ele nunca lavava, que ele chamou de “A Caneca da Sorte”. Ele realmente acreditava nessa sorte.

Mas isso tudo não era o suficiente. Ele precisava de um hobbie diferente. Ele então passou a fazer pequenos potes de argila. Passava horas moldando-os e pintando-os delicadamente. Depois, pisava neles, quebrando todos em pedacinhos, e os restos ele enterrava, dizendo que era presente seu para a Mãe Terra.

Passou a evitar os bares. Achava que os atendentes de bar eram extraplanares disfarçados e infiltrados na sociedade, e que, por algum motivo, o queriam. Começou a andar mancando. Mancava ora num pé, ora no outro, sem motivos aparentes. Começou a dar nomes novos a tudo o que via, até mesmo para pessoas.

Perdeu (ou acreditou ter perdido, pelo menos) o senso de direção. Se perdia facilmente. Isso era um problema, porque agora ele tinha que ficar sempre perto da água – ele agora pensava poder entrar em combustão espontânea a qualquer momento. Gostava, então de se manter molhado, “para prevenir”.

Sempre que o chamavam, ele gritava “Hayamay!!”, e nem ele entendia o que significava isso.

Pra ele, o tempo não mais passava: o que mudava era a percepção que as pessoas têm de tempo. E as pessoas, ele gostava de as cumprimentar! Cumprimentava-as de uma maneira que ele dizia ancestral: quando alguém lhe era apresentado, ele cospia na própria mão, esfregava no traseiro, e batia na testa da pessoa. Dizia que isso significava “Prazer em conhecê-lo!”.

Nas ruas, gostava de escolher aleatoriamente uma pessoa e a seguir. Esse era um dos seus passatempos prediletos. Gostava também de repetir interrogativamente a última frase que lhe fora dita. Quanto a ele, quando falava alguma coisa, murmurava para si mesmo algo como “Sim, isso é bom, muito bom...”, balançando a cabeça.

Ele gostava de números, mas eles eram muito comuns. Falava-os sempre em porcentagens agora. Achava mais estiloso e matemático. Queimou os próprios dedos para não ter impressões digitais, ora, impressões digitais é algo que todos têm. Só conseguia dormir no máximo 3 horas por dia, e sob a luz do sol. Quando falava com alguém, ficava cutucando a pessoa. Com o dedo mindinho esquerdo. Roia as unhas até elas não mais existirem... usava apenas um tênis... desafiava para um duelo “à moda antiga” todos que discordavam de suas opiniões... perdia a atenção completamente quando via algum objeto brilhante... nunca recusava um desafio, não importava o quão difícil ou perigoso ele era...

Mudava de comportamento com o cair da noite... só comia com as mãos... sempre ria sem controle quando as pessoas mencionavam a palavra “sério”... adquiriu artificialmente alergia a pêlos de cavalo... colecionava pedras de formas diferentes que ele achava na rua... ... ...


...


Meu deus!


Começaram a chamá-lo de O Maníaco.


- Idiotas! Sim, muito bom, idiotas! – gritava ele, ajeitando seu tapa-olho – não é maníaco, é Maníaco-co-co-co-co-co-co...